Quem vai cuidar de você na velhice?
Nove em cada dez idosos perderão a independência e precisarão de cuidados. Não reconhecer as limitações é um caminho bem perigoso, pois pode levar a incapacitação e a perdas ainda mais graves.
Em 2025 seremos o sexto país do mundo em pessoas com mais de 60 anos, segundo a OMS. Ao mesmo tempo, pesquisas do IBGE nos contam que 37% das mulheres não querem ter filhos. Quem vai cuidar dos velhos no Brasil?
A ideia de que filhos vêm ao mundo para cuidar dos genitores há muito tempo está saindo de moda. A expectativa de vida cresce, a medicina ajuda a prolongar a autonomia e a independência e quem cuida dos velhos são os próprios velhos. Porém para envelhecermos com um pouco mais de dignidade, já que o país caminha rápido nesse sentido e não parece ter nenhuma iniciativa de políticas públicas para a população idosa, é importante termos em mente que nada acontece de uma hora para outra. Como costumo dizer, o navio não dá cavalo de pau, precisamos de planejamento a curto, médio e longo prazo. Aqui vão algumas dicas:
*Planejamento financeiro- envelhecer custa caro. O plano de saúde é um absurdo e aparelhos auditivos custam mais que um carro. ainda tem dentista, médicos, cuidados com a alimentação, fisioterapia, a lista é grande. Por isso, pense como você quer envelhecer e se organize para isso. Organizar a velhice não prejudica o presente.
*Tenha pessoas queridas por perto- ao longo da vida vamos construindo a família que a gente escolhe e também trazemos os nossos vínculos com a família de nascimento. Uma paciente muito esperta e sem filhos me contou que ao fazer 60 anos começou uma missão de ter sempre amigos no mínimo 20 anos mais jovens, sem perder a conexão com os amigos da vida. Acho uma tática inteligente, pois esses amigos também podem ser as pessoas que vão dar uma força na hora da necessidade.
*Comunidades de Idosos- as moradias compartilhadas de pessoas com mais de 60 anos são cada vez mais comuns. O formato é diferente da república de estudantes, mas não menos animados. Existem grupos só de mulheres, grupos mistos e também as casas que estão sendo transformadas para serem co-habitadas como a ideia linda de cohousinhg proposta pela engenheira Grafira Dias.
*Tecnologia e tecnologia assistiva- Em uma palestra na FAAP (vídeo) o especialista em inovação e transformação digital Walter Longo, diz que a Inteligência Artificial é a primeira tecnologia sendo utilizada pelos mais velhos e não pelos jovens. Diz que a boa interação com as AIs precisa de extensão vocabular, imaginação e repertório, habilidades adquiridas com tempo de vida e leitura, mas não com o TikTok. A curiosidade é algo que não se pode perder com o passar dos anos, não dá pra ter rancor do novo e querer ficar presa na mesmice. Trocar o celular é chato, mudar um aparelho, um eletrodoméstico em casa, também pode ser, mas precisamos nos manter entusiasmadas com a novidade. A tecnologia salvou vidas durante o período de confinamento da pandemia. Eu mesma, nunca imaginei fazer fisioterapia com pacientes de 90 anos por chamada de vídeo. Alguns iam bem sozinhos, outros precisavam de ajuda, mas seguimos e tivemos ótimos resultados. Um outro ponto é a tecnologia assistiva, recursos utilizados para facilitar as atividades diárias quando existem limitações. Vão desde aparelhos de audição que se conectam à televisão e ao celular, os relógios e pulseiras inteligentes que dão alerta se a pessoa cai ou passa mal, as assistentes virtuais, como Alexa e Google, entre outros. O uso desses recursos pode melhorar a autonomia do idoso dentro e fora de casa.
*Planejamento legal- aqui entram algumas questões espinhosas. Eu disse no começo do texto que filhos cuidarem dos pais está meio fora de moda, né? Mas se os pais precisam de cuidados, e não têm condições financeiras de se manter, é obrigação legal dos filhos pagar por este cuidado. Do contrário, podem ser enquadrados no crime de abandono de incapaz. Na ausência de filhos, outros parentes podem ser acionados como irmãos, por exemplo. Se o responsável legal não tem recursos, ele mesmo pode oferecer o cuidado como forma de compensação financeira. Uma coisa é cuidar e outra é participar da vida do idoso, ninguém é obrigado a isso. Assim como um pai que paga pensão alimentícia não é obrigado a estar presente na vida do filho. As relações familiares nem sempre são fáceis, quando vemos um velho sozinho em uma clínica ou hospital, logo julgamos a família, mas desconhecemos sua história pregressa. Outro ponto importante são as diretrizes, os desejos de cada um em relação à própria finitude. Ninguém gosta de falar de morte, como se não falar fosse fazê-la desaparecer, mas é justamente o contrário. Outro dia uma paciente me falou que não quer ser cremada, perguntei se ela tinha falado isso para alguém da família e ela não lembrava, sabia que estava escrito em algum caderno ou diário. Não conversar sobre o que ela deseja, pode levá-la a virar cinzas e depois, quando alguém for arrumar suas coisas, pode ser que leia num caderno perdido, que na verdade ela gostaria de ter sido enterrada. Expressar, enquanto estamos lúcidos, nossos desejos, as diretrizes de como queremos ser cuidados nos momentos finais da nossa vida, não obriga ninguém a cumprir. Mas se você tiver ao seu lado pessoas éticas e dignas, terá sua vontade atendida. Assisti no final de semana uma série sobre o Jô Soares. No último episódio a ex-mulher do humorista, Flávia Soares, fala como foram os momentos finais da vida dele no hospital. Ele estava lúcido e pode escolher o que queria e o que não queria. Disse que seus 84 anos foram suficientemente lindos e seriam eternos. Todos nós merecemos morrer com dignidade, como diz o título do livro e TEDx da médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, a morte é um dia que vale a pena viver.
Quando criança, a maior parte das meninas -hoje, alguns meninos também- ganha uma boneca para cuidar. Não vou nem entrar na questão do cuidado ser atribuído às mulheres, isso é assunto para outro texto, mas vou falar da maternidade como o principal cuidado atribuído às mulheres. Todos nascemos de uma mãe e de um pai que, se tudo correr como esperado, vão envelhecer e envelhecendo precisarão de cuidado. Logo, ter pai e mãe é uma condição para existir, ter filhos, não. Acontece que poucas pessoas estão preparadas para o envelhecimento dos pais, o que de certa forma, nos encaminha para sermos os próximos velhos da fila. Ninguém faz curso para cuidar de velhos, aprender a dar banho, trocar fralda, dar comida e não seremos mães e pais dos nossos pais, os papéis não se invertem, o que muda é quem pode vir a cuidar de quem, e falo como filha.
Nove em cada dez idosos perderão a independência e precisarão de cuidados. Não reconhecer as limitações é um caminho bem perigoso, pois pode levar a incapacitação e perdas ainda mais graves. Ter ajuda enquanto posso dizer como quero ser cuidado é interessante, pois ensino como gosto do banho, a marca do hidratante que uso, minhas roupas preferidas, como gosto do penteado, se passo ou não batom. Pode chegar o momento em que eu não consiga me expressar, mas quem está ali comigo vai saber como cuidar de mim para que eu me sinta confortável.
O momento de pensar a velhice é enquanto eu ainda não estou velho, é um pensamento construído no cotidiano. Envelhece bem a pessoa que consegue se adaptar a novas situações e se responsabiliza pela construção de sua vida. Chegar aos 80, 90 anos com autonomia não é só um privilégio, é também um ato de resistência.